Translate

domingo, 11 de janeiro de 2015

Da Série Coletivos Capítulo 2 - Sobre as tentações

Eu estava quieto no meu canto, juro que estava, e estava até sozinho, era um Sábado de tarde, o ônibus quase vazio, e então ele entrou, o sapato puído, a calça preta a camisa branca fechada até o colarinho o fatídico livro já gasto debaixo do braço e o principal, o olhar, aquele olhar tomado de uma certeza que só os estúpidos e os loucos se atrevem a ter. Aquela certeza que independe do nome do objeto de adoração, aquela certeza que chuta imagens, que degola pessoas, que mata cartunistas. Aquela certeza que coloca a tua crença acima do bem e do mal, que faz do teu acreditar, o acusador, o juiz e principalmente o carrasco.

A convicção dele era tanta que nem se deu ao trabalho de pedir licença para começar a diatribe, a certeza era tanta que acredito ele nunca abrira o livro para ler, e saber se realmente as suas citações ali se encontravam. Pouco interessava para mim como ele chegara ali até onde ele dizia que chegou, o curioso daqueles sapatos puídos e daquela camisa branca de segunda ou terceira mão e de colarinho gasto é que elas representavam que ele havia chegado ao ápice de alguma coisa. Sua certeza o colocava em um topo, ele se sabia possuidor de algo maior e que tinha obrigação de compartilhar conosco, que a seus olhos ainda éramos imperfeitos, fracos, titubeantes e ignorantes dependendo tão somente da poderosa revelação que ele e somente ele tinha a nos oferecer.


Mas ele não pediu licença, e começou a vociferar suas religiosidades invadindo meu silêncio e a privacidade dos meus pensamentos, atrapalhando meu raciocínio, esvaindo minhas idéias. Aquele olhar intenso mas sem profundidade que só um cego de alma consegue dar passou por mim, e captou minha insatisfação com a invasão imediatamente. Não que eu tivesse dado qualquer sinal, Mas talvez pelo simples fato de eu não estar olhando pra baixo, nem repetindo amens ou aleluias. E o discurso passou a ser unidirecional, como tentando captar em mim onde estavam meus demônios, assassinando o português, o que tornava o discurso ainda mais lamentável, o orador inflamado, criticava religiões, uso de todo tipo de entorpecentes lícitos ou não (menos o que ele carregava sob o braço), orientações e práticas sexuais tentando ler em meu rosto qual daquelas seria minha fraqueza. Sem sucesso, mas ainda sem desviar os dois carrascos de mim, como se falasse diretamente ao próprio Satanás me apresentou com riqueza de detalhes ao Seu Deus, não um de amor, perdão e misericórdia, mas um de exércitos. Não um que morreu para me salvar, mas um que está para me condenar. E por aí foi até que me deparei com o fato de que realmente estava eu a perder minha alma profundamente tentado entre três pecados capitais; a Soberba de achar que eu teria algo para ensinar para esse sujeito, a Ira de voar no pescoço dele e fazê-lo engolir o livro, e a Preguiça de escolher continuar meu percurso à pé a continuar a ouvi-lo.

Levantei-me toquei a campainha quase 2 kms antes de meu objetivo e desci, salvando assim minha alma.  

Mas após essa santificada decisão de rejeitar os três pecados ainda grita em mim uma dúvida, se o céu for realmente para "os escolhidos" como ele; salvar-me para quê? 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por comentar!