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quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Quando conheci meu melhor amigo.

Eu teria mais ou menos três anos de idade, morando ainda na cidade de Mauá - Grande São Paulo. Naquele tempo ia a um Jardim de Infância de uma instituição religiosa cujo nome nem me lembro mais. Lá tínhamos o carinho da bondosa Madre Aurora, aliás a única realmente amorosa dentre as rígidas freiras que nos atendiam. Lembro-me que ela adoeceu e não mais ia à salinha nos cuidar, estava proibida de receber visitas pois convalescia na clausura. O que jamais impediu que eu me esgueirasse pelos corredores do convento e acabasse sentado em sua cama conversando com ela. Me pergunto hoje se eu era tão bom assim nas técnicas de infiltração ou se alguma outra madre entendia que o carinho de uma criança de 3 anos pode ser o mais ingênuo e puro remédio para uma alma enferma. Sempre a encontrava lendo, e lhe pedia que me contasse o que estava nos livros. 

Naquele mesmo ano, meu pai foi transferido para a cidade de Mogi das Cruzes para onde nos mudamos, Lá, nos fins de semana, que era a única parte da semana em que ele nos encontrava acordados, eu o podia ver lendo, era um livro de capa grossa vermelho sangue, com escritos dourados no lombo. Me lembro de vê-lo rir olhando para o livro. Pedi que me contasse o que lia, ele me disse: quando você aprender a ler eu te deixo pegar os livros. Nada de leitura antes de dormir, ou contação de história, aí toda a motivação que eu teria; e toda a que precisei. Com a mesma capacidade de atenção que qualquer criança de 3 anos, a cada instante aparecia para minha mãe com alguma página de jornal ou revista, ou embalagem de algum produto e perguntava o que estava escrito ali. Minha mãe repetia cuidadosamente as sílabas, e esperava que eu repetisse as mesmas. Ao cabo de um ano, em um outdoor, de dentro de um carro, minha primeira leitura, meu primeiro texto manifestado em voz alta: Co-ca-co-la. Imediatamente meu pai parou o carro. "Onde?" me perguntou apontei para o letreiro vermelho com as características letras brancas, minha mãe disse: "Ele está só associando imagens". Fiquei com o ego ferido e comecei a ler tudo o que via escrito nos letreiros ao lado do comercial do refrigerante. Arrematei com "Posso pegar os livros agora?" E recebi mais uma vez a frase que acompanharia todos os meus dias, a que precederia sempre um Não ou uma amarga discussão antes de um árduo SIM, "vou pensar". 

Ao dia seguinte quatro gibis, Mônica e sua Turma, Cebolinha, Pato Donald e Mickey aterrizaram em minhas mãos. "quando vc for capaz de entender a história e contar pra mim; poderá pegar os livros". Nunca aceitei um "não", nem o da pílula anticoncepcional que minha mãe tomava quando engravidou de mim; portanto o desafio não me impediria de conseguir o que eu queria. em questão de semanas o primeiro dos livros vermelho e dourado estava em minhas mãos. Meu Primeiro Amigo. E a partir daí nunca mais parei.

Reinações de Narizinho foi o primeiro, e depois O Sítio do Picapau Amarelo, Viagem ao Céu, o Saci, Gramática e Aritmética da Emília, História do Mundo para as Crianças, Geografia de Dona Benta, Fábulas, Histórias de Tia Nastácia, o Minotauro, o Poço do Visconde, os Doze Trabalhos de Hércules. Cada um deles devorado durante o dia todo e parte da noite escondido debaixo do cobertor na luz de uma lanterninha. Como qualquer criança que assiste ao mesmo filme várias vezes, cada livro foi lido várias vezes. Até que finalmente entrei na escola, quem conhece as obras de Monteiro Lobato sabe que ao ler os tais livros (história, geografia, gramática, aritmética) entrei na escola com toda a bagagem curricular da primeira à quarta série do ensino fundamental. Só não sabia escrever. E acho que nunca aprendi, Até hoje minha caligrafia é horrível, Nunca escrevi, sempre expressei o que sentia através de teclados; primeiro de uma máquina de escrever, depois de um computador. Mas desde aquele titubeante Co-ca-co-la, pelos meus olhos, Monteiro Lobato, Malba Tahan, Vitor Hugo, Pirandello, Calderón de la Barca, Lope de Vega, Pablo Neruda, Antonio Machado, Isaac Asimov, Tom Clancy, Morris West, Chico Anysio, Jo Soares, Paulo Coelho, Carlos Castañeda, Trigueirinho, Allan Kardec, Chico Xavier, Benítez, Borges, Cortázar, García Marques, Jorge Amado, Rabindranath Tagore, Sans Éxupery, Lampeduza, Mika Waltari, Ken Follet, Mary Shelley, Agatha Christie, Conan Doyle, Bram Stoker, Tolkien, Frank Herbert, Hermann Hesse, Richard Bach, Arthur C Clark, Deepak Chopra, Rudyard Kipling, Disney, Esopo, Andersen, Grimm, Thomas Mann, Veríssimos Pai e Filho, e centenas de outros, mais de mil livros lidos, mais de mil viagens no tempo, no espaço, na alma. Mais de mil lições aprendidas, mais de mil culturas vislumbradas. Centenas de Mestres em milhares de lições. Quatro idiomas aprendidos. Dezenas de voltas ao mundo sem sair do lugar. A todos esses grandes homens que deixaram suas almas abertas para a eternidade, e que me proporcionaram, emoção, alegria, encantamento, lágrimas, aprendizado, minha mais profunda reverência, Salaam Aleikum; Shalom Aleichem, Namastê, Axé.

6 comentários:

  1. Quanta riqueza num texto só! Parece que a inspiração dos livros que você leu está bem resumida aqui, porquie fiz essa leitura e estou querendo mais. Passou um filme na minha cabeça, como se eu estivesse vendo cada situação contada aqui. E é isso que um bom escritor faz para um amante da leitura: escreve algo tão encantador e simples, mas capaz de adoçar e apaixonar a alma do leitor.

    Sou seu fã! Você é um exemplo de sabedoria e de pessoa. Espero poder ler um livro seu um dia.

    Bjão!

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  2. Se um dia eu escrever um livro vai ser por conta da sua insistência e do Wellisson, kkk vai ser um livro com dois prefácios, um pra cada cúmplice, rsrsrsrs. Obrigado pelo incentivo.

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  3. Apoiado e me sentindo honrado. Pense com carinho!

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