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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Transmutação

E o Viajante do Inferno de repente parou de andar em círculos.

Percebeu que devia parar de reclamar e agir.

Mas agir de que forma? Ação nunca faltou...

Talvez fazer caridade... E anos se passaram com o trabalho de caridade constante, os ouvidos apurados a cada lição recebida, dada, aprendida. Mas a caridade ainda não estava completa, era uma caridade barganha, uma caridade visando receber um retorno.

O Viajante do Inferno tinha decidido não andar mais em círculos, mas sem estrelas no céu, sem bússola, sem mapa continuava vagando.

Dando voltas no inferno, decidido a abandonar tudo, em momentos desistir da vida, em outros desistir de viver.

Mas mesmo sem recompensas visíveis a caridade continuou acontecendo, mesmo com as portas fechando, o momento de alívio da alma era a caridade. Mesmo com todos os tropeços, brigas, mal entendidos, mal enviados, energias corrompidas; a caridade estava lá.

Quase sem querer a caridade finalmente se tornou desinteressada, desistiu da barganha da intimidação ao universo.

Muitos opinaram, disseram ter a chave da porta dessa prisão que curiosamente só pode ser aberta por dentro. Muitos em diversos planos fizeram promessas, quase nenhuma aconteceu no tempo esperado. De repente a sucessão de esperanças não atendidas deixou de ser desespero e se tornou aceitação, e voltou a ser desespero, e voltou a ser aceitação, e voltou a ser desespero e voltou a ser aceitação.

Nos momentos de isolamento e "meditação"; meditação? remoenda, isso sim; remoer mágoas, rancores, ódios de estimação de décadas, ódio justiceiro, ódio para torturar os injustos, ódio para matar os criminosos, ódio covarde escondido dentro do peito atrás de palestras e palestras proferidas sobre perdão e caridade.

Faz o que mando, não faz o que faço!

Mas a cada dia os momentos de remoer, de odiar, de emitir energia negativa eram muitos, quase necessários como para o fumante encher os pulmões da fumaça assassina. A cada momento de solidão o ódio inundava o ser do Viajante do Inferno, subia a pressão dele, virava dor no peito pressão nos pulmões, agonia.

Orai e vigiai? Só para os outros. Prece? só duas vezes por semana na hora da caridade, na hora do discurso ironicamente vazio de atitude ou de exemplo.
E quanto mais ódio cultivava mais tempo sozinho era concedido ao Viajante do Inferno, desemprego, preguiça, inatividade, afastamento dos amigos. E dá-lhe odiar, remoer, ranger dentes nas trevas internas sob a luz do sol.

De repente a conclusão infeliz; culpa de Deus; ou ele perseguia o Viajante do Inferno ou o havia deixado por conta das trevas. Brigas discussões ofensas. Curiosamente o Viajante do Inferno se sentia desamparado por Deus; mas procurava entre os seus representantes, os dignos e os nem tanto, procurava uma voz, uma explicação, uma palavra... Se era perseguido, queria saber porquê, o quê havia feito de tão tenebroso pra merecer tanta miséria.

Todo rodeado de luz, amparado pela família na espiritualidade, amparado por guias e orixás, tudo que o Viajante do Inferno enxergava eram as trevas emitidas pelo seu próprio coração...

Fez rituais, sem fé; acreditando que era merecedor de algo, ouviu conselhos esdrúxulos advindos de oráculos despreparados, porque na verdade, o que havia vindo do alto era o silêncio; silêncio necessário, silêncio absoluto para que o ódio gritado pela alma não reverberasse, não tivesse eco...

Quando o silêncio cessava, os únicos conselhos eram Paciência, Paciência, Paciência. E o Viajante do Inferno só queria mandar para longe quem lhe trazia essa única resposta. Um dia as vozes disseram ao Viajante do Inferno que precisava de tratamento, tratar a alma e não o espírito, tratar a Mente Eterna, pra libertar a Mente Presente.

As circunstâncias não aconteciam, primeiro faltava o mestre para esse tratamento, depois faltava o dinheiro, mas na verdade faltava era querer, querer abandonar o vício de odiar, o vício de remoer, o vício de ranger dentes. E o Viajante do Inferno ainda culpava a Deus, rodeado de luz só enxergava as trevas geradas por seu coração.

Em algum momento um raio de luz, uma intenção, um desejo, conhecer a fonte do ódio, a razão do ódio, a origem do ódio. Entender o ódio seria a única forma de derrotá-lo de bani-lo da alma, erradicar o ódio para realmente poder conhecer a mudança.

Neste tempo, a caridade sempre praticada, às vezes por obrigação somente, mas na maioria das vezes por amor, pelo prazer que causava ao coração; pelo descanso que dava ao espírito tão viciado em odiar.

Finalmente um caminho escolhido, uma decisão tomada, conhecer a fonte do ódio, surge então a possibilidade, a orientadora desse caminho, e a verba necessária. O desejo de sacrificar outros desejos em nome de banir o ódio, livrar-se dessa droga.

E o viajante começa agora uma nova viagem, curiosamente naquele mesmo momento Seu Tranca Ruas o aconselha: Quem está no Inferno só pode sair se continuar andando; parar no inferno é ficar no inferno."

E a nova caminhada começa, caminhar pelas vidas passadas, para o Viajante do Inferno foi mergulhar nas trevas do seu passado, misericordiosamente esquecido, re-encontrar seres queridos e nem tanto, em uma sucessão de idas e vindas, de estar a cada momento em uma das pontas da espada, ora empunhando ora sendo atravessado por ela. Vida e vidas de vingança travestidas em uma falsa justiça. A cada dia de terapia o desejo de aprofundar mais e o sofrimento de reconhecer-se ainda tão atrasado, tão necessitado de reformar seu interior, de limpar sua história, de resgatar seu passado.

E o Viajante do Inferno finalmente encontra sua revelação: Não foi Deus quem o abandonou, mas ele que abandonou a Deus. O silêncio do alto, não foi imposto; foi pedido. Em antiga encarnação uma vida de ingratidão e revolta, o Viajante do Inferno sempre dotado do dom da palavra negou a Deus, negou a Vida Eterna, negou a Lei do Retorno, exerceu o Livre Arbítrio e escolheu as Trevas; seus discursos encontraram descontentes, suas palavras eram o que outros trevosos queriam ouvir, prometia facilidades, prometia vantagens no presente e no além. Desviou centenas, talvez milhares do seu caminho de aprimoramento e evolução. Criou em vida uma legião de seguidores, e no pós vida uma legião de obsessores, de cobradores.

O Viajante do Inferno foi Crime, foi Lei, matou em nome do Demônio mas muito mais em nome de Deus, morreu de tristeza, morreu de culpa, morreu de vingança. E finalmente viveu pra ver muitos sonhos naufragarem, muitas portas se fecharem, muitas oportunidades desaparecerem, sempre porque seu ódio constante o mantinha em sintonia com seus algozes, porque sintonizava seus obsessores com as trevas geradas pelo próprio coração.

Nesse momento o Viajante do Inferno entendeu, não caminhava no inferno, ele era o inferno, seu próprio inferno, levava-o consigo a cada passo que dava, às vezes machucando só a si mesmo, mas muitas vezes levando esse inferno a quem o rodeava. A origem do ódio agora não era mais relevante, pois a sua fonte estava dentro de si, se renovando e sintonizando com os obsessores e deles se alimentando também. A Luz então rompeu as trevas.

Luz em lágrimas, Luz em verdade, Luz em vergonha, Luz em arrependimento, Luz em humilhação, Luz em submissão ao Pai, e finalmente Luz em Perdão, Perdão dado, Perdão recebido. Décadas de rancor, de ódio de mágoas, vidas e vidas de vingança e ódio dissolvendo-se em lágrimas de redenção, e o Viajante momentaneamente despido do Inferno caiu de joelhos, finalmente entendeu que não basta curvar o corpo, ajoelhar o corpo, bater cabeça com o corpo; mas sim com a alma. E pediu Perdão ao Pai, pediu perdão aos guias, pediu perdão à espiritualidade e aos seus obsessores, pediu perdão aos algozes de séculos. Despiu-se do orgulho, despiu-se de todas as muralhas que havia construído para impedir a Deus de entrar e com a testa no chão, foi erguido.

O Viajante, agora viajante da Luz,  reconheceu que o inferno é por si mesmo criado, e dali para frente em sua caminhada se encarregaria diariamente de esvaziar o pote de mágoas, de não deixar mais o ódio entrar, o Viajante da Luz ainda não encontrou seu destino, mas sabe que está no caminho certo. O Viajante da Luz sabe que ainda tem muito a percorrer, ainda muitos tropeços e armadilhas para fazê-lo recair no vício, mas onde não há ainda o perdão; há o desejo de perdoar.

Enquanto o Viajante da Luz superava séculos de sofrimento autoimposto; em algum lugar dos planos superiores seu "Eu Crístico" ou "Eu Búdico" ou seu "Eu Superior" finalmente cumpria a missão de trazer para a luz uma parte de Sí. Levado novamente às esferas superiores, depara-se com a porta do Grande Templo, mas curiosamente percebe que há muitos Grandes Templos, muitas portas e que para cada Grande Templo se dirigem multidões. Ao transpassar o Portal percebe que ali está só, cada um com sua própria sala, no centro desta sala, o Livro; o Livro Acásico, o Livro Ackashico, o Livro da Vida. No centro aberto na sua eterna metade o Livro do Viajante, sempre já escrito, mas com muito por escrever; páginas em branco. O Eu Maior do Viajante se dispõe a anotar as últimas experiências, mas sua mão é detida.

Á sua frente, formado de nuvens a figura do guardião daquele portal, na figura de um ancião atemporal, como o Eremita do Tarot, ele estende o braço e move as mãos como em um gesto de boas vindas, ou de remover uma cortina; as paredes parecem dissolver-se e aparece um caminho, lindo. Outro gesto, outro caminho, lindo também. Nenhum caminho é feio, nós é que nos perdemos por seus maus atalhos e nossas más escolhas. Outro gesto, outro caminho, e finalmente quando ele fecha a mão a parede que retorna está cheia de livros. Cada livro uma vida, um caminho que o guardião ajudou a mostrar, esperou escolher, orientou no caminhar.

De repente todos os livros começam a voar sumir no improvável e infinito teto do Templo. Quando retorna o olhar para baixo; na mão do ancião um molho de chaves antigas e douradas, cada chave uma porta, cada porta uma vida, cada vida uma história, cada história, um livro.

O Ancião então se dirige ao Eu Superior do Viajante da Luz:

- "Bem Vindo Guardião dos Caminhos, eis aqui sua nova tarefa, Guardião dos Caminhos. Aqui os Livros que hás de guardar. Dentre todas estas chaves não hás de encontrar a tua. Não ainda, Guardião dos Caminhos. Quando novamente estas paredes estiverem repletas das histórias dos caminhos que ajudarás a mostrar, com cujos conselhos ajudarás a trilhar, outro virá para abrir tua porta, para que coloques todas essas experiências em tua história, em teu Livro. Até lá Guardião dos Caminhos ajudarás o próximo a caminhar em direção ao Amor Maior, ao Amor Primeiro. E não creias que tuas experiências foram em vão, ainda que teu coração estivesse alijado de Deus, tua alma nunca esteve. Tens já alguns livros na tua biblioteca, daqueles que de algum modo ajudastes a encontrar o Caminho."

O Eu Espiritual do Viajante da Luz, agora "Guardião dos Caminhos", volta à consciência da matéria. Neste mundo de armadilhas ilusórias criadas pela soma dos infernos individuais, ele sabe que tem uma missão, a de mostrar caminhos, a de orientar, a de apontar para a Luz do Amor Maior. Seja como instrumento dos Oráculos, seja a través do dia a dia das atitudes, dos exemplos e da luta constante sobre seus próprios vícios e mágoas, seja dando passagem aos mais humildes e dedicados servidores da luz neste mundo.

O Viajante da Luz sabe que a viagem não acabou. Mas já colocou em sua mochila Gratidão, Arrependimento, Amor e Perdão suficientes para que não haja espaço para acumular tanta mágoa. E agora percebe que não viajava sozinho, mas com a imensa ajuda dos Orixás, dos Anjos, dos Mestres Ascensos, dos Guias e todos os emissários de Deus; que cada vez que, cego, blasfemou ao tropeçar, devia ter visto o tamanho do abismo de que foi salvo de cair...

O Viajante da Luz agradece aos companheiros de jornada e avisa; agora tem orientação, se chama gratidão, tem estrelas no seu céu pois voltou a sonhar, tem uma bússola cuja agulha de amor  aponta sempre para a luz, e se nada mais der certo tem um mapa chamado Fé, que está sempre certo, mas que muitas vezes não conseguimos entendê-lo pois nos falta a lente da Humildade para interpretá-lo.

Boa Viagem, que a minha está sendo fantástica.

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